domingo, 30 de agosto de 2020

O que fere o teu masculino?

              

 

    Com o avançar dos debates que evidenciam as opressões de gênero enquanto um pilar essencial de manutenção do Estado e do capitalismo, é imprescindível a morte imediata e incontestável das concepções que formam e/ou formatam a masculinidade, aqui, dirijo-me não só masculinidade branca e heterossexual, mas, à todas aquelas que ao longo dos séculos foram sendo criadas ou recriadas tendo por base essencial esse padrão. Contudo, para a existência desse massacre basilar, é necessário que todo aquele que se pretenda um indivíduo-ferramenta na luta revolucionária anticolonialista não se furte a conflitar o que molda sua existência, percebendo em si e nos seus comportamentos a primeira zona de combate para a mudança da sociedade.

    Mas que linhas invisíveis demarcam e moldam o terreno ideológico da masculinidade? É importante ter em mente, ao nos debruçar nesse questionamento, que o conceito de masculinidade foi alvo de disputa histórica tomando a forma com que conhecemos a partir dos últimos séculos. Kimmel (1998) traz que a partir da primeira metade do século XIX, passa a existir na Europa e nos Estados Unidos um novo “ser masculino”, o Self-Made Man, que devia a todo instante se provar e demonstrar seu valor a partir da aquisição de bens e elevação de cargo e importância social. Esse modelo de “ser homem” vai ser posto como modelo básico do viver capitalista sumariamente importado e debatido no resto do mundo em conjunto com os ideais higienistas e liberais. Essa constante necessidade de provar-se homem cria a tendência de desmontar e inferiorizar todas as outras formas de ser homem, é a partir desse movimento de contradição que se molda o hegemônico, delimitando os outros enquanto os outros em uma relação de superior versus inferior, que é por conseguinte, uma relação de poder.

    Ressalto a importância desse movimento onde “hegemônico e o subalterno emergem em mútua e desigual interação, em uma ordem social e econômica com uma demarcação prévia distorcida de gênero” (KIMMEL, p.103, 1998). Nesse momento, virada do século XIX, a raça e a classe são somadas com outros caracteres para criação de estereótipos que vão ser utilizados em um processo de estigmatização que é sintomático. Homens negros, indígenas vão ser tratados enquanto selvagens, violentos, irracionais ao mesmo tempo que são incapazes de sustentar suas famílias, ingênuos e incultos assim como, homens gays e mulheres vão ser alvos preferenciais dessa violência estrutural do gênero. A construção dessa hegemonia tem por objetivo principal delimitar masculinidades que vão ser sumariamente tratadas como problemáticas ou desviantes, para com isso, tornar mais simples ao homem burguês exercer e disputar discursivamente suas masculinidades com seus semelhantes, garantindo ao mesmo um tempo uma ferramenta segura para afastar os concorrentes dessa narrativa.

    Relegada ao campo do físico e da irracionalidade a masculinidade do homem negro vai ser entendida por Nkósi (2014) num processo de projeções simultâneas, ao mesmo tempo que o corpo negro é dotado de atributos físicos invejáveis, reside neles o instinto selvagem da violência; ao mesmo tempo que possui um pênis gigantesco, reside nele a tendência ao abuso sexual e ao estupro; ao mesmo tempo que são inocentes e influenciáveis, são socialmente perigosos, preguiçosos e viciados, ou seja, o “negro é representado como contraponto antiético do ser humano” (Nkósi, 2014, p.83). Esses rótulos que são sumariamente construídos, principalmente nas sociedades norte-americana e brasileira, transformam homens negros, contraditoriamente, em indivíduos invisíveis que oferecem perigos constantes às estruturas sociais, justificando sua perseguição, encarceramento e assassinato promovidos initerruptamente pelo Estado. Esses estereótipos que interseccionam gênero e raça, são estendidos aos povos indígenas no Brasil sofrendo poucas mudanças no quadro geral, visto como um povo “atrasado” frente ao progresso. O homem indígena é tido como inculto e ingênuo dotado de uma masculinidade selvagem, inferiores ao homem hegemônico por não possuírem ferramentas intelectuais para compreender a sociedade moderna. Eles não merecem possuir suas terras pois não sabem como gestá-las em prol da produção capitalista, devem, portanto, cedê-las aos grandes homens brancos detentores dos maquinários e meios capazes de dar rumo ao progresso capitalista.

    Contudo, é indiscutível que, ao construir-se enquanto hegemônico, é sobre as mulheres e homens gays que o padrão de masculinidade branca e heterossexual deposita seus conceitos de inferioridade, frisando que esse movimento é extremamente acentuado pelo racismo. Cabe a esses indivíduos os ônus da construção de um padrão de masculinidade branca que é a principal causa de que mulheres e homens gays negros tenham suas vidas marcadas pela violência racial e de gênero sumariamente construídas e reafirmadas como necessárias e corretivas para corpos que não se adaptaram à norma.

    Problematizando ainda mais o conceito socialmente produzido de ser masculino e de masculinidades, as existências trans põem em crise todo o discurso que gira em torno no binarismo, esse sistema que delimita o masculino e feminino como traços biológicos, elencando possibilidades e vivências fora dos moldes de gênero hegemonicamente traçados. Pouco se têm de estudos sobre as transmasculinidades o que revela a dificuldade social em aceitação e reconhecimento desses corpos, muitas vezes enquadrados como mulheres lésbicas masculinizadas, “é como se os comportamentos e os significados considerados masculinos emanassem necessariamente da presença material original do pênis.” (ALMEIDA, 2012, p.519).

    Esse conceito do ser masculino construído como zona de conforto para que homens brancos pudessem limar discursivamente a existência de outros e galgar livremente ascensões sociais, tornou-se estrutural a tal maneira que é pilar do capitalismo e seus sistemas de retroalimentação. Num sentindo geral, a existência de uma masculinidade hegemônica e percebida primeiramente pelos corpos alvos de sua violência reforçados pelas marcas de um poder construído na branquitude e heterossexualidade compulsória que relega às outras existências impossibilidades sociais predefinidas. Assim, somente a destruição de todo o sistema dessa masculinidade existente é que pode abrir caminho à uma nova abordagem de gênero/raça onde os subalternos possam ter voz ativa e produzir livremente suas existências.




Referências

ALMEIDA, Guilherme. “Homens trans”: novos matizes na aquarela das masculinidades?. Revista Estudos Feministas, v. 20, n. 2, p. 513-523, 2012.


KIMMEL, Michael S. A produção simultânea de masculinidades hegemônicas e subalternas. Horizontes antropológicos, v. 4, n. 9, p. 103-117, 1998.


MACHADO, Lia Zanotta. Masculinidades e violências: gênero e mal-estar na sociedade contemporânea. Universidade de Brasília, Departamento de Antropologia, 2001.


NKOSI, Deivison Faustino. O pênis sem falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidade e racismo. Feminismos e masculinidades. Eva Alterman Blay (org.). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014.