terça-feira, 18 de maio de 2021

CUIDAR NÃO É PRENDER !!


**A foto acima foram feitas pelo fotógrafo Luiz Alfredo durante sua visita ao hospital em 1961 e foram publicadas na revista O Cruzeiro. Elas estão também presentes no livro “Holocausto Brasileiro”, da jornalista Daniela Arbex. **


Com as mudanças comportamentais e danos psicossociais causados pela pandemia, salta aos olhos os contínuos processos de desmonte do SUS e, concomitantemente, da área psiquiátrica que vão sendo intensificados no governo Bolsonaro. De acordo com DELGADO (2019, p.1), desde a década de 1980 até o governo Temer, existiu uma mobilização social e cultural gradual e complexa da gestão pública que resultou em um crescimento relativamente firme e contínuo no que diz respeito a políticas de atenção à saúde mental da população brasileira.

O primeiro sinal desse desmantelamento vem no formato da a Emenda Constitucional (EC) 95 ou, “política do teto de gastos” como ficou conhecida, é a partir dela que temos um congelamento das verbas destinadas às instituições públicas revelando o aprofundamento da agenda neoliberal na gestão pública brasileira. A Emenda afeta o SUS e seus serviços interseccionais com a assistência social e educação impactando diretamente na área da saúde mental que mantém uma correlação com essas três áreas. Podemos inferir que o recrudescimento da agenda neoliberal já mostrava ali sua agenda de enfraquecimento dos serviços públicos básicos.

Entre 2016 e 2019 o governo brasileiro foi tomando medidas e alterando gradualmente a qualidade da prestação de serviços e atendimento à população que necessita. Esse processo se evidencia quando observamos, por exemplo, a alteração da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), dispensando a obrigatoriedade da presença do agente comunitário de saúde nas equipes de saúde da família; alteração e redução nos cadastramentos no Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e estímulo financeiro e institucional da utilização dos Hospitais Psiquiátricos como modelo central para tratamento.

Em pronunciamento oficial, a partir de uma nota técnica emitida em fevereiro de 2019, o Ministério da Saúde do governo Bolsonaro reforça seu pacto com as medidas neoliberais do governo Temer. A Nota reproduz em seu discurso o combate genérico e superficial anti-ideológico, carro-chefe da campanha bolsonarista, apresentando novos elementos que vão nortear a desconstrução dos serviços psiquiátricos, como: reforço na centralidade do tratamento em hospitais psiquiátricos, incentivo à internação de pacientes em hospitais gerais, uso de tratamento por eletroconvulsoterapia e o desmembramento entre uma lógica de saúde mental e combate às drogas, com o financiamento de comunidades terapêuticas.

Em um cenário de pandemia e eleições municipais, muitos pacientes de hospitais municipais se deparam com cenários de troca dos psicólogos e psiquiatras e/ou falta de medicação nas farmácias dos postos de saúde o que encarece e dificulta a sequência do tratamento. Levando em conta tal cenário, insistimos que analisando a junção entre a EC 95 e a nota ministerial temos uma conjuntura de sucateamento do atendimento psiquiátrico via SUS e reforço a privatização e encarceramento manicomial de uma parcela da população, ou seja, colocar esses pacientes novamente em instituições que operam sob uma ótica asilar.

 E o que seriam esses asilos? São instituições que têm como principais funções sociais o gerenciamento de sujeitos improdutivos, que na falta de condições de serem produtivos economicamente, são despejados, isolados e tutelados pelo saber médico. Soma-se a isso a lógica da saúde enquanto mercadoria, que consiste em uma forma de geração de lucro através da circulação de insumos e de recursos manicomiais, de modo que os “loucos” viram consumidores dos serviços.

Além disso, os hospitais psiquiátricos operam o importante papel de lugar de despejo não só dos improdutivos, mas também do sujeito que representa as contradições latentes da nossa sociabilidade, de modo que o louco, enquanto produto direto da subjetivação neoliberal, denuncia o nosso padrão normativo de organização social. Se o nosso modo de produção e de sociabilidade tem o lucro acima do bem estar do coletivo, como não sermos uma máquina de loucos? Como já dizia Fanon, “o louco é aquele que é estranho à sociedade”.

Tais instituições, em um contexto psiquiátrico, sob o disfarce de neutralidade científica e primor técnico, alienam o sujeito tomado como doente mental, o desresponsabilizando do autocuidado, de modo a criar a demanda de uma proteção médica (tutela). Desta forma, o Estado protege a sociedade do louco, e o louco de si mesmo, tirando assim, violentamente, a sua autonomia e liberdade. 

Cabe ainda fazer a urgente ponte entre duas instituições: as prisões e os manicômios. Ambas são importantes mecanismos do Estado de gerenciamento e de controle social,  seja pela via da tutela ou pela via da criminalização, dos sujeitos que representam o desvio social ou a perturbação da ordem. Portanto, faz-se fundamental compreender como tais instituições ao segregam para “ressocializar”, exercem o papel crucial de depósito humano, sobretudo através da coisificação da população pobre e negra, tendo assim, forte propósito eugenista sob uma base racista. 

Um antigo lema da Luta Antimanicomial que deve sempre ser levantado é que a "liberdade é terapêutica"! E o que é o cuidado em liberdade se não a ação, com o outro, sobre a realidade a fim de transformá-la? Como já dizia Bakunin: “A liberdade do outro, longe de ser um limite ou a negação da minha liberdade, é, ao contrário, sua condição necessária e sua confirmação. Apenas a liberdade dos outros me torna verdadeiramente livre”.

Dito isso, a Luta Antimanicomial deve ser construída de forma articulada à luta política geral, e não de forma tão isolada e restrita a profissionais e usuários de serviços de saúde mental como é atualmente. Tal luta deve ser reivindicada como uma pauta urgente e que diz respeito a todos que lutam pela liberdade e pela igualdade!

No que diz respeito especificamente à resistência antimanicomial, vivemos uma grande crise, a qual estourou recentemente frente aos fortes ataques ao campo da atenção psicossocial nos últimos anos. Diante de um processo de despolitização do campo da saúde mental, assistimos a Reforma Psiquiátrica sofrendo um processo de manicomialização. Ao confiarmos na legalidade e na ilusão de manutenção dos direitos conquistados institucionalmente, vimos as nossas lutas sendo amortecidas, e nossos direitos duramente conquistados, sendo retirados rapidamente mediante as fortes investidas neoliberais. 

Cabe relembrar o Manifesto de Bauru, no Segundo Congresso Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental em 1987, momento em que a Luta Antimanicomial marca a sua radicalização, colocando-se contra a destruição total das instituições asilares e da lógica manicomial, assim como contra qualquer forma de exclusão e de discriminação. Tal compromisso trouxe a necessidade inerente de aliança com a classe trabalhadora organizada e demais movimentos populares, e nesse momento de desmonte do nosso Sistema Único de Saúde e de contra reforma psiquiátrica, é urgente resgatarmos a radicalidade e tais princípios na Luta Antimanicomial para termos uma sociedade livre dos manicômios!

Em defesa de uma vida digna!

Em defesa do SUS!

Em defesa da saúde mental em liberdade!

Tortura e manicômios, nunca mais!


Por: Job Paulo / Beatriz Oliveira