Visibilidade Lésbica: afeto e resistência em nossos meios políticos
Refletir sobre lesbianidades e lutas anarquistas é, num primeiro
impulso, a procura por nomes e materiais sobre lésbicas anarquistas visíveis na
história, busca essa que nos apresenta uma lacuna de referências. Se perguntar
o porquê dessas ausências nos leva a duas questões: em primeiro lugar, a invisibilidade feminina
dentro de diversos movimentos, dada por questões estruturais de machismo e
misoginia; e em segundo, o agravamento dessa condição quando pensamos em
mulheres lésbicas, invisibilizadas também graças à lesbofobia.
A lesbianidade e as questões em torno dela são
sistematicamente envoltas em invisibilidade, a história de mulheres lésbicas
tem sido reincidentemente apagada ou não levada em conta em diversos contextos.
Visto que a lesbianidade é uma rachadura na norma, uma ameaça à estrutura
heteropatriarcal dominante na nossa sociedade, o que explica o grande esforço
pelo seu apagamento.
Assim, apesar da predominância masculina também
nos nossos meios anticapitalistas, é possível encontrar referências a mulheres
anarquistas, a exemplo de nomes como Maria Lacerda de Moura, Lucy Parsons, Espertirina
Martins e Emma Goldmann. Goldmann, inclusive, foi uma importante teórica anarquista
que levantou, em sua trajetória, a bandeira do não preconceito contra lésbicas
e gays, sendo criticada até dentro de contextos libertários, afinal mesmo o
movimento anarquista em sua época não estava livre de discriminações contra
sujeitos LGBTQIA+[1].
Contudo, nenhuma dessas mulheres citadas é
lésbica, até onde se sabe. Um dos poucos nomes, em destaque, de anarquistas
publicamente lésbicas é o de Lucía Sánchez Saornil. Lucia
foi uma militante anarquista
e feminista, poeta espanhola, conhecida por ser uma das fundadoras do Mujeres Libres, importante
organização autônoma de mulheres anarquistas, nascida da necessidade de resistência ao machismo fora e dentro
dos meios libertários.
A organização
se articulava pela busca do que elas chamavam de
‘‘luta dupla’’, pela emancipação social anarquista e pela emancipação feminina.
A Mujeres
Libres teve grande expressividade durante a Guerra Civil Espanhola e é ainda hoje uma referência importante no debate de
gênero e anarquismo.
Lucia
também serviu na Confederación Nacional
del Trabajo (CNT) e na Solidaridad
Internacional Antifascista (SAI) e, entre outras coisas, publicou em gazetas importantes na década
de 1920, usando por vezes
pseudônimos masculinos para adentrar esses espaços. Ela conseguiu o feliz feito
de explorar temáticas lésbicas em um período em que qualquer ruptura com
a heterossexualidade era criminalizada e as vozes femininas eram secundarizadas, ainda
assim pouco conhecemos da sua história em nossos meios.
Ser lésbica era uma condição política e afetiva
constitutiva da sua identidade. Lucia Sánchez, além de ter sido perseguida
enquanto anarquista, também o foi enquanto uma mulher que amava outras mulheres.
Essas identidades não estavam separadas, ela, sem dúvida, tratou sua
sexualidade como parte da sua luta e da forma como percebia o mundo e os e as
companheiras a sua volta. Contudo, raramente a sexualidade das mulheres é
considerada no estudo das suas trajetórias de resistência e, na maioria das
vezes, supõe-se, de antemão, que eram/são heterossexuais.
Então, além de buscar por essas referências, é
importante refletir o porquê a sexualidade é empurrada para um local de menor
importância. Por
que a sexualidade é, por tantas vezes, tida como um pauta considerada
subjetiva, identitária e individualizada? Por que não politizamos nossas
sexualidades e buscamos compreendê-las como parte dos sistemas de dominação ou
das práticas de revolução?
Sendo que a luta das mulheres
tem nos ensinando, há muito tempo, sobre como o privado é politico, e
sabemos que, por mais que se venda uma ideia de que nossas sexualidades dizem
respeito apenas com quem nós fazemos sexo ou não, elas são muito mais do que
isso.
A heterossexualidade, por exemplo, não é apenas
uma opção ou gosto pessoal que livremente acontece, ela se inscreve muito mais
como uma cultura, um sistema, há instituições comprometidas com a sua
manutenção e que se beneficiam dela. A heterossexualidade compulsória (RICH,
2010 [1982]) serve ao capitalismo, mantendo
mulheres subservientes a uma lógica de produção e reprodução que é fundamental
a esse sistema econômico\político da nossa sociedade.
Assim, ser
uma mulher lésbica pode também ser lido como uma maneira de subverter lógicas
repressoras e normativas. Nesses termos,
podemos pensar como as lesbianidades têm potencial para extrapolar as relações
afetivas-sexuais privadas, constituindo outras formas de interação e
solidariedade entre mulheres, que podem modificar culturalmente as rivalidades
e subserviência empurradas para as populações socialmente disciplinadas como
femininas.
A visibilidade das nossas sexualidades é,
portanto, política. E, assim sendo, é preciso pensar de maneira política as
relações, sejam elas hegemônicas ou marginalizadas, retirando-as também de um
campo liberal que as identificado apenas como orientações isoladas, identidades
desligadas de questões estruturais e por isso não dialogada em nossas teorias e
práticas anarquista. Como nos lembra Audre Lorde:
[...] esse é o estandarte do cinismo da direita, encorajar membros de grupos oprimidos a agir uns contra os outros, e por tanto tempo a gente é dividida por causa de nossas identidades particulares que nós não podemos juntar-nos todos juntos numa ação política efetiva. (LORDE, 2017 [1983], p. 6)
Lorde também afirma que nossa libido não é
apenas a energia sexual que empregamos nas relações amorosas, mas, sim, uma
energia que nos move para produzir outras formas de discursos, para trabalhar e
lutar. Baseadas nisso, podemos afirmar que nossos desejos, afetos e relações
são também vitais nas batalhas que travamos.
É preciso resgatar a história da movimentação
expressiva de grupos e militantes lésbicas no Brasil e na América Latina, a
exemplo disto temos o GALF - Grupo de Ação Lésbica Feminista, que chegou a se
replicado no Peru, e que foi o responsável pela revista Chana com Chana, considerada a primeira publicação lésbica do
pais. A Chana com Chana chegou a
fazer referência direta às Mujeres Libres e, frequentemente, trazia debates
com temas libertários, como a noção de autonomia.
Em 1983, em São Paulo, o GALF protagonizou o
caso do levante do Ferro’s Bar, onde
houveram protestos contra a repressão frequente a mulheres lésbicas e, inclusive,
a proibição da venda do Chana com Chana. Esse episódio foi o motivo do 19 de agosto
ser nacionalmente considerado o Dia do Orgulho Lésbico, e é preciso que não nos
esqueçamos dessas origens.
A história dos movimentos lésbicos é marcada por
resistência e rebeldia. Autoras e militantes lésbicas foram essenciais para
trazer à tona debates relevantes como o de violências simultâneas,
interseccionais, abordadas por exemplo pelo Coletivo feminista negro Combahee River, composto por mulheres negras, heterossexuais e lésbicas, dentre elas
importantes autoras lésbicas negras como Aude Lorde e Cheryl Clarke.
Podemos lembrar também das contribuições de Ochy
Curiel – antropóloga social afro-dominicana e lésbica - que denuncia o caráter
heterossexual da construção do Estado e da ideia de Nação em seus trabalhos.
Ela também busca politizar a lesbianidade para além de apenas uma ‘‘orientação
sexual’’, como também o faz Dorotea Gómez Grijalva - uma teórica maya da Guatemala - que defende a proposta de uma ‘‘lesbianidade política’’.
No Brasil, a Heretika, um
editorial independente de difusão lesbofeminista e anticapitalista, tem feito o
excelente trabalho de tradução e difusão de
textos de autoras lésbicas, feministas negras e anticapitalistas,
democratizando assim, através de zines, o alcance dessas escritas e reflexões.
Enquanto grupos anarquistas, precisamos também nos apropriar desses
conhecimentos em nossas formações internas e públicas. Mesmo quando não diretamente
anarquistas, muitas dessas produções podem contribuir para o enriquecimento da
nossa teoria e prática cotidiana.
Mulheres lésbicas sofreram, historicamente, de
uma extrema exclusão, seja nos movimentos [hetero]feministas, por aquelas que
não queriam ser ‘‘confundidas com lésbicas’’, seja nos espaços mistos não
heterossexuais, dominados por homens gays que monopolizavam as pautas. Bem como
nas esquerdas, onde os partidos políticos subestimaram, invisibilizaram e
diminuíram as lutas consideradas “homossexuais” de maneira geral e mesmo e
mesmo vertentes anarquistas que cristalizaram o debate de classe como central e
não se propuseram a tecer uma compreensão interseccional desse debate.
Assim, podemos nos perguntar: Grupos anarquistas
têm sido um espaço de acolhimento ou de exclusão para mulheres lésbicas?
Companheiros e companheiras heterossexuais têm pautado suas lesbofobias
internalizadas? Continuamos reproduzindo modelos de militância masculinistas? Temos oportunidade
para debater sobre nossos afetos nos espaços de resistência?
As lesbianidades são múltiplas. Existimos lésbicas negras, periféricas,
mães, gordas, pessoas com deficiência, trabalhadoras rurais, indígenas. E
quanto mais interseccionados são esses corpos lésbicos mais violências recebem.
Também do Estado, da polícia e do mercado de trabalho capitalista. Quanto menos
feminilizadas mais excluídas dos espaços profissionais que lucram com a venda
hipersexualizada dos corpos femininos. Assim,
mulheres lésbicas são por vezes enxergadas como não úteis, um empecilho, para
esse sistema de produção\reprodução.
Políticas públicas para a população LGBTQIA+ são
importantes conquistas, obtidas através de lutas, mas são também frágeis e
desmontadas a cada mudança autoritária de governo. Ademais, as políticas
instituídas até aqui secundarizam a segurança e saúde de mulheres que se
relacionam com mulheres. É preciso também pautar a radicalização dessas lutas,
visto que autogestão e autonomia têm sido, historicamente, palavras e ações
caras à sobrevivência das lésbicas. Como nos lembra uma das reflexões da
Heretika:
Não por acaso, mulheres rebeldes e insubmissas
são negativamente acusadas de serem lésbicas. Em diferentes momentos, a
lesbianidade, tida como uma disfunção, representou e ainda representa uma
ameaça à norma de instituições como a Igreja, a Família nuclear e o próprio
Estado. O fato de a lesbianidade ser tão temida e reprimida pelo Estado,
revela-nos que há potência e força política no amor entre as mulheres.
Concluo então com essa reflexão e chamada para
articulação: Em que medida a luta anarquista pode contribuir com as lutas
lésbicas, e em que medida as lutas lésbicas podem contribuir com as lutas
anarquistas ?
Referências :
LORDE, Audre. Os
Usos do Erótico: O Erótico como Poder. Traduzido por Tatiana Nascimento dos
Santos – dezembro de 2009. Retirado
de Sister Outsider, 1984. In Textos
escolhidos de Audre Lorde. Editora Heretika (PDF)
LORDE, Audre Transformando o silencia em linguagem e
ação. Traduzido de Audre
Lorde - "Irmã Estrangeira" (Sister Outsider), Ensaios e Conferências,
1984.In Textos escolhidos de Audre Lorde.
Editora Heretika (PDF)
RICH, Adrienne.
Heterosexualidade compulsória e existência lésbica. Bogoás. n. 05 | 2010 | p. 17-44
Lucía Sánchez Saornil. 2013.
Disponível em :https://www.anarquista.net/lucia-sanchez-saornil/.
Acesso em : 25 de ago 2021
[1] Sigla que busca abrange a diversidade de sexualidades
e identidades de gênero, sendo Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transsexuais, Queers, Intersexo, Assexuais e o + sinalizando a possibilidade de
outras identificações.