domingo, 29 de agosto de 2021

 


Visibilidade Lésbica: afeto e resistência em nossos meios políticos


Refletir sobre lesbianidades e lutas anarquistas é, num primeiro impulso, a procura por nomes e materiais sobre lésbicas anarquistas visíveis na história, busca essa que nos apresenta uma lacuna de referências. Se perguntar o porquê dessas ausências nos leva a duas questões: em primeiro lugar, a invisibilidade feminina dentro de diversos movimentos, dada por questões estruturais de machismo e misoginia; e em segundo, o agravamento dessa condição quando pensamos em mulheres lésbicas, invisibilizadas também graças à lesbofobia.

A lesbianidade e as questões em torno dela são sistematicamente envoltas em invisibilidade, a história de mulheres lésbicas tem sido reincidentemente apagada ou não levada em conta em diversos contextos. Visto que a lesbianidade é uma rachadura na norma, uma ameaça à estrutura heteropatriarcal dominante na nossa sociedade, o que explica o grande esforço pelo seu apagamento.

Assim, apesar da predominância masculina também nos nossos meios anticapitalistas, é possível encontrar referências a mulheres anarquistas, a exemplo de nomes como Maria Lacerda de Moura, Lucy Parsons, Espertirina Martins e Emma Goldmann. Goldmann, inclusive, foi uma importante teórica anarquista que levantou, em sua trajetória, a bandeira do não preconceito contra lésbicas e gays, sendo criticada até dentro de contextos libertários, afinal mesmo o movimento anarquista em sua época não estava livre de discriminações contra sujeitos LGBTQIA+[1].

Contudo, nenhuma dessas mulheres citadas é lésbica, até onde se sabe. Um dos poucos nomes, em destaque, de anarquistas publicamente lésbicas é o de Lucía Sánchez Saornil. Lucia foi uma militante anarquista e feminista, poeta espanhola, conhecida por ser uma das fundadoras do Mujeres Libres, importante organização autônoma de mulheres anarquistas, nascida da necessidade de resistência ao machismo fora e dentro dos meios libertários.

A organização se articulava pela busca do que elas chamavam de ‘‘luta dupla’’, pela emancipação social anarquista e pela emancipação feminina. A Mujeres Libres teve grande expressividade durante a Guerra Civil Espanhola e é ainda hoje uma referência importante no debate de gênero e anarquismo.

Lucia também serviu na Confederación Nacional del Trabajo (CNT) e na Solidaridad Internacional Antifascista (SAI) e, entre outras coisas, publicou em gazetas importantes na década de 1920, usando por vezes pseudônimos masculinos para adentrar esses espaços. Ela conseguiu o feliz feito de explorar temáticas lésbicas em um período em que qualquer ruptura com a heterossexualidade era criminalizada e as vozes femininas eram secundarizadas, ainda assim pouco conhecemos da sua história em nossos meios.

Ser lésbica era uma condição política e afetiva constitutiva da sua identidade. Lucia Sánchez, além de ter sido perseguida enquanto anarquista, também o foi enquanto uma mulher que amava outras mulheres. Essas identidades não estavam separadas, ela, sem dúvida, tratou sua sexualidade como parte da sua luta e da forma como percebia o mundo e os e as companheiras a sua volta. Contudo, raramente a sexualidade das mulheres é considerada no estudo das suas trajetórias de resistência e, na maioria das vezes, supõe-se, de antemão, que eram/são heterossexuais.

Então, além de buscar por essas referências, é importante refletir o porquê a sexualidade é empurrada para um local de menor importância. Por que a sexualidade é, por tantas vezes, tida como um pauta considerada subjetiva, identitária e individualizada? Por que não politizamos nossas sexualidades e buscamos compreendê-las como parte dos sistemas de dominação ou das práticas de revolução?

Sendo que a luta das mulheres tem nos ensinando, há muito tempo, sobre como o privado é politico,  e sabemos que, por mais que se venda uma ideia de que nossas sexualidades dizem respeito apenas com quem nós fazemos sexo ou não, elas são muito mais do que isso.

A heterossexualidade, por exemplo, não é apenas uma opção ou gosto pessoal que livremente acontece, ela se inscreve muito mais como uma cultura, um sistema, há instituições comprometidas com a sua manutenção e que se beneficiam dela. A heterossexualidade compulsória (RICH, 2010 [1982]) serve ao capitalismo, mantendo mulheres subservientes a uma lógica de produção e reprodução que é fundamental a esse sistema econômico\político da nossa sociedade.

Assim, ser uma mulher lésbica pode também ser lido como uma maneira de subverter lógicas repressoras e normativas. Nesses termos, podemos pensar como as lesbianidades têm potencial para extrapolar as relações afetivas-sexuais privadas, constituindo outras formas de interação e solidariedade entre mulheres, que podem modificar culturalmente as rivalidades e subserviência empurradas para as populações socialmente disciplinadas como femininas.

A visibilidade das nossas sexualidades é, portanto, política. E, assim sendo, é preciso pensar de maneira política as relações, sejam elas hegemônicas ou marginalizadas, retirando-as também de um campo liberal que as identificado apenas como orientações isoladas, identidades desligadas de questões estruturais e por isso não dialogada em nossas teorias e práticas anarquista. Como nos lembra Audre Lorde:


[...] esse é o estandarte do cinismo da direita, encorajar membros de grupos oprimidos a agir uns contra os outros, e por tanto tempo a gente é dividida por causa de nossas identidades particulares que nós não podemos juntar-nos todos juntos numa ação política efetiva. (LORDE, 2017 [1983], p. 6)


Lorde também afirma que nossa libido não é apenas a energia sexual que empregamos nas relações amorosas, mas, sim, uma energia que nos move para produzir outras formas de discursos, para trabalhar e lutar. Baseadas nisso, podemos afirmar que nossos desejos, afetos e relações são também vitais nas batalhas que travamos.

É preciso resgatar a história da movimentação expressiva de grupos e militantes lésbicas no Brasil e na América Latina, a exemplo disto temos o GALF - Grupo de Ação Lésbica Feminista, que chegou a se replicado no Peru, e que foi o responsável pela revista Chana com Chana, considerada a primeira publicação lésbica do pais. A Chana com Chana chegou a fazer referência direta às Mujeres Libres e, frequentemente, trazia debates com temas libertários, como a noção de autonomia.

Em 1983, em São Paulo, o GALF protagonizou o caso do levante do Ferro’s Bar, onde houveram protestos contra a repressão frequente a mulheres lésbicas e, inclusive, a proibição da venda do Chana com Chana.  Esse episódio foi o motivo do 19 de agosto ser nacionalmente considerado o Dia do Orgulho Lésbico, e é preciso que não nos esqueçamos dessas origens.

A história dos movimentos lésbicos é marcada por resistência e rebeldia. Autoras e militantes lésbicas foram essenciais para trazer à tona debates relevantes como o de violências simultâneas, interseccionais, abordadas por exemplo pelo Coletivo feminista negro Combahee River, composto por mulheres negras, heterossexuais e lésbicas, dentre elas importantes autoras lésbicas negras como Aude Lorde e Cheryl Clarke.

Podemos lembrar também das contribuições de Ochy Curiel – antropóloga social afro-dominicana e lésbica - que denuncia o caráter heterossexual da construção do Estado e da ideia de Nação em seus trabalhos. Ela também busca politizar a lesbianidade para além de apenas uma ‘‘orientação sexual’’, como também o faz Dorotea Gómez Grijalva - uma teórica maya da Guatemala - que defende a proposta de uma ‘‘lesbianidade política’’.

No Brasil, a Heretika, um editorial independente de difusão lesbofeminista e anticapitalista, tem feito o excelente trabalho de tradução e difusão de  textos de autoras lésbicas, feministas negras e anticapitalistas, democratizando assim, através de zines, o alcance dessas escritas e reflexões. Enquanto grupos anarquistas, precisamos também nos apropriar desses conhecimentos em nossas formações internas e públicas. Mesmo quando não diretamente anarquistas, muitas dessas produções podem contribuir para o enriquecimento da nossa teoria e prática cotidiana.

Mulheres lésbicas sofreram, historicamente, de uma extrema exclusão, seja nos movimentos [hetero]feministas, por aquelas que não queriam ser ‘‘confundidas com lésbicas’’, seja nos espaços mistos não heterossexuais, dominados por homens gays que monopolizavam as pautas. Bem como nas esquerdas, onde os partidos políticos subestimaram, invisibilizaram e diminuíram as lutas consideradas “homossexuais” de maneira geral e mesmo e mesmo vertentes anarquistas que cristalizaram o debate de classe como central e não se propuseram a tecer uma compreensão interseccional desse debate.

Assim, podemos nos perguntar: Grupos anarquistas têm sido um espaço de acolhimento ou de exclusão para mulheres lésbicas? Companheiros e companheiras heterossexuais têm pautado suas lesbofobias internalizadas? Continuamos reproduzindo modelos de militância masculinistas? Temos oportunidade para debater sobre nossos afetos nos espaços de resistência?

As lesbianidades são múltiplas. Existimos lésbicas negras, periféricas, mães, gordas, pessoas com deficiência, trabalhadoras rurais, indígenas. E quanto mais interseccionados são esses corpos lésbicos mais violências recebem. Também do Estado, da polícia e do mercado de trabalho capitalista. Quanto menos feminilizadas mais excluídas dos espaços profissionais que lucram com a venda hipersexualizada dos corpos femininos. Assim, mulheres lésbicas são por vezes enxergadas como não úteis, um empecilho, para esse sistema de produção\reprodução.

Políticas públicas para a população LGBTQIA+ são importantes conquistas, obtidas através de lutas, mas são também frágeis e desmontadas a cada mudança autoritária de governo. Ademais, as políticas instituídas até aqui secundarizam a segurança e saúde de mulheres que se relacionam com mulheres. É preciso também pautar a radicalização dessas lutas, visto que autogestão e autonomia têm sido, historicamente, palavras e ações caras à sobrevivência das lésbicas. Como nos lembra uma das reflexões da Heretika:

Não por acaso, mulheres rebeldes e insubmissas são negativamente acusadas de serem lésbicas. Em diferentes momentos, a lesbianidade, tida como uma disfunção, representou e ainda representa uma ameaça à norma de instituições como a Igreja, a Família nuclear e o próprio Estado. O fato de a lesbianidade ser tão temida e reprimida pelo Estado, revela-nos que há potência e força política no amor entre as mulheres.

Concluo então com essa reflexão e chamada para articulação: Em que medida a luta anarquista pode contribuir com as lutas lésbicas, e em que medida as lutas lésbicas podem contribuir com as lutas anarquistas ?

 

 

Referências :

LORDE, Audre. Os Usos do Erótico: O Erótico como Poder. Traduzido por Tatiana Nascimento dos Santos – dezembro de 2009.  Retirado de Sister Outsider, 1984. In Textos escolhidos de Audre Lorde. Editora Heretika (PDF)

 

 LORDE, Audre Transformando o silencia em linguagem e ação. Traduzido de Audre Lorde - "Irmã Estrangeira" (Sister Outsider), Ensaios e Conferências, 1984.In Textos escolhidos de Audre Lorde. Editora Heretika (PDF)

 

RICH, Adrienne. Heterosexualidade compulsória e existência lésbica. Bogoás.  n. 05 | 2010 | p. 17-44

Lucía Sánchez Saornil. 2013. Disponível em :https://www.anarquista.net/lucia-sanchez-saornil/. Acesso em : 25 de ago 2021


[1] Sigla que busca abrange a diversidade de sexualidades e identidades de gênero, sendo Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais, Queers, Intersexo, Assexuais e o + sinalizando a possibilidade de outras identificações. 


Um comentário:

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